Em 1970, o carioca Chico Buarque de Hollanda já era um
dos mais respeitados cantores/compositores da MPB. Estava vivendo em seu autoexílio na Itália a
aproximadamente um ano, depois de ver a ascensão do regime militar e sua forma
truculenta de comando.
De longe acompanhou os artistas serem criativamente
podados. Quem se manifestasse contra o regime certamente sofreria severas
represarias.
Em contrapartida o Brasil estava em franco crescimento
econômico, as oportunidades multiplicavam-se e prometiam tirar o povo da
miséria. Artigos antes considerados luxuosos, agora podiam ser adquiridos pelo
cidadão assalariado comum, batedor de ponto, que derrama seu suor para dar a
mínima dignidade a sua família.
A propaganda pregando patriotismo estava em todos os lugares,
e muitas pessoas faziam vistas grossas para a violência do regime Médici
iludidas pelo chamado “Milagre Brasileiro”.
Ouviu de lá que em dezembro de 1968 seus amigos Gilberto
Gil e Caetano Veloso foram presos e torturados por encabeçar o movimento de
contracultura denominado Tropicália, considerado uma ameaça à soberania do
governo brasileiro. Foram soltos só em 1969, sob a condição de sair do país.
Depois de passagens por Lisboa e Paris exilaram-se em Londres.
Geraldo Vandré sofreu com o mesmo problema por compor
“Para Não Dizer Que Não Falei das Flores”, preso e torturado até a beira da
loucura, foi expulso do país e buscou exílio na Europa.
Até mesmo o poeta Vinícius de Moraes que exercia cargo
diplomático a mais de 20 anos foi perseguido pelo exército. Acusado de vagabundagem foi compulsoriamente aposentado do exercício de suas funções.
Foi inclusive o próprio Vinícius de Moraes que aconselhou
através de uma carta que Chico voltasse fazendo barulho.
Quando finalmente voltou ao Brasil em 1970 trouxe consigo
a dura crítica de “Apesar de Você”. Música amplamente censurada, teve todas
suas cópias recolhidas quando os censores pescaram as referências ao governo.
Na Itália Chico já trabalhava em outras canções, muitas
delas fizeram parte de seu próximo álbum nacional. Construção de 1971.
Apesar de como um todo funcionar muito bem, Construção
tem em sua faixa-título o momento mais brilhante do álbum.
Situada na quarta faixa do primeiro lado, “Construção”, a
canção, é liricamente apaixonante. Seus versos possuem um espirito épico como a
ópera. Com um interessante jogo de palavras, onde a cada uma das partes são
trocadas as proparoxítonas finais de cada verso alterando o sentido da frase, o
que faz parecer a mesma história de pontos de vista diferentes.
Suas estrofes são repetidas por duas vezes e meia antes
de cair num trecho de “Deus Lhe Pague” – canção que abre o disco.
A música começa com uma base criada em cima de dois
acordes de violão e vai crescendo gradualmente, ganhando corpo com instrumentos
percussivos típicos do samba e uma orquestra conduzida pelo maestro Rogério
Duprat que dá um ar dramático a obra. O grupo vocal MPB4 ajudou com as harmonias vocais.
É literalmente uma construção que começa do zero e vai ficando
robusta até ganhar sua forma final.
A tônica por trás de “Construção” é extremamente indigesta.
Surpreende ela ter feito tanto sucesso mesmo abordando um tema pesado.
Chico Buarque já declarou que não tentou escrever uma
canção de protesto nem se inspirou em fatos reais em sua composição, mas a
história do operário da construção civil que sai todos os dias cedo para ganhar
o pão da família com muito suor e as vezes sangue é extremamente palpável.
Uma dura crítica ao capitalismo, as parcas condições de
trabalho, a sociedade cada vez mais egoísta e consumista.
Todos temas que ainda hoje estão em voga – talvez ainda
mais acentuados do que nunca.
Hoje em 2015, ouvir “Construção” soa aos meus ouvidos como
outros grandes épicos da música do século XX. Seu poder a eleva um degrau mais
alto que qualquer outra coisa produzida por Chico Buarque antes ou depois e
quebra qualquer barreira de gênero tornando-se atemporal.
Fica na minha concepção no mesmo patamar de “Kashmir” do
Led Zeppelin ou “Stargazer” do Rainbow, por exemplo. Pode não ser a melhor, ou até
minha música favorita dentre muitas do mesmo artista, mas seu nível a coloca em
outra dimensão.
Sua grandeza é maior que toda a obra, portanto não pode
ser comparada a mais nada, pois simplesmente não encontraríamos paralelos.
Construção
(Letras por: Chico Buarque de Hollanda)
“Amou daquela vez
como se fosse a última
Beijou sua mulher
como se fosse a última
E cada filho seu
como se fosse o único
E atravessou a rua
com seu passo tímido
Subiu a construção
como se fosse máquina
Ergueu no patamar
quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo
num desenho mágico
Seus olhos
embotados de cimento e lágrima
Sentou pra
descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com
arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou
como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou
como se ouvisse música
E tropeçou no céu
como se fosse um bêbado
E flutuou no ar
como se fosse um pássaro
E se acabou no chão
feito um pacote flácido
Agonizou no meio do
passeio público
Morreu na contramão
atrapalhando o tráfego.”
“Amou daquela vez
como se fosse o último
Beijou sua mulher
como se fosse a única
E cada filho como
se fosse o pródigo
E atravessou a rua
com seu passo bêbado
Subiu a construção
como se fosse sólido
Ergueu no patamar
quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo
num desenho lógico
Seus olhos
embotados de cimento e tráfego
Sentou pra
descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com
arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou
como se fosse máquina
Dançou e gargalhou
como se fosse o próximo
E tropeçou no céu
como se ouvisse música
E flutuou no ar
como se fosse sábado
E se acabou no chão
feito um pacote tímido
Agonizou no meio do
passeio náufrago
Morreu na contramão
atrapalhando o público.”
“Amou daquela vez
como se fosse máquina
Beijou sua mulher
como se fosse lógico
Ergueu no patamar
quatro paredes flácidas
Sentou pra
descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar
como se fosse um príncipe
E se acabou no chão
feito um pacote bêbado
Morreu na
contra-mão atrapalhando o sábado.”
“Por esse pão pra
comer, por esse chão prá dormir
A certidão pra
nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar
respirar, por me deixar existir,
Deus lhe pague
Pela cachaça de
graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a
desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes
pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague Pela
mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas
bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz
derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague.”
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